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60 anos de golpe militar: fruto da polarização da sociedade brasileira

Pelotas e região constituíram rotas de fuga para opositores, enquanto autoridades locais alinhadas aos militares não aderiram à linha dura

Foto: Volmer Perez - DP - Cientística político Renato Della Vechia explica sobre o período

Heitor Araujo
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Completa neste domingo 60 anos do golpe militar, que depôs o presidente João Goulart ao exílio no Uruguai, em 1964, e instituiu o regime ditatorial que governou o Brasil por 21 anos, até 1985. O período foi marcado pela quebra da democracia no País e refletiu um momento de instabilidade e de grande polarização da sociedade brasileira.

O regime militar caracterizou-se, nacionalmente, por forte repressão aos movimentos oposicionistas, que levou às prisões, torturas, assassinatos e censura. Como resistência à ditadura, parte dos grupos de oposição optou pela luta armada, enquanto outros adotaram uma linha de resistência pacífica.

O cientista político Renato Della Vechia, diretor do Instituto Mario Alves (IMA), baseado em Pelotas, explica que os movimentos mais militarizados instituíram-se, principalmente, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e em partes do Nordeste. Por ser um ponto estratégico de fronteira, os movimentos de resistência evitaram que os holofotes da repressão mirassem no Rio Grande do Sul. Em Pelotas, explica Della Vechia, alguns fatores fizeram com que houvesse menor registro de violência de Estado.

Além da baixa presença de resistência armada, as forças políticas conservadoras não aderiram à linha dura da ditadura. "Não tenho conhecimento de que houvesse tortura realizada na cidade. O que se teve foram pessoas daqui presas e levadas a Porto Alegre, onde foram torturadas", relata o cientista político.

Polarização

Della Vechia compara o período de polarização pré-golpe de 64 com o que se tem atualmente na sociedade brasileira, de uma elite mais conservadora e os campos trabalhistas mais progressistas e nacionalista. "Cidades do porte de Pelotas tinham essa polarização muito forte. É um pouco parecido com a polarização de hoje, ideológica. É disputa de concepção de mundo", explica.

Nacionalmente, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), vinculado aos trabalhadores e sindicatos, e o Partido Social Democrata (PSD), mais de classe média e parte da elite econômica, compunham o campo político nacionalista e progressista, enquanto a União Democrática Nacional (UDN) estava ligada às elites mais conservadoras.

No Rio Grande do Sul, contudo, esse arranjo de forças era diferente: o PSD estava mais vinculado ao conservadorismo, portanto, em polo oposto ao PTB e alinhado à UDN. Em Pelotas, vivia-se um período de alternância de poder entre os dois últimos partidos na Prefeitura. Após o golpe, contudo, a situação mudou. "No período militar, a oposição ganhar a eleição era muito difícil. Tinha-se uma máquina montada para o regime ganhar", relata Della Vechia. Em 1964, ao menos três vereadores do PTB foram presos pelo regime militar em Pelotas.

Zona Sul na rota de fuga

Foram pontos importantes de fuga de perseguidos pelo regime militar as fronteiras de Jaguarão e de Santa Vitória do Palmar. A Ação Popular, vinculada à Igreja Católica, manteve núcleos de apoio, com sede em Porto Alegre, e células em Pelotas, que era uma espécie de "segunda fronteira" para aqueles que optaram por deixar o país para evitar a repressão.

É o que explica a pesquisadora em História, com área de concentração em Fronteiras e Identidades, Darlise Gonçalves de Gonçalves, que tem uma dissertação sobre as rotas de fuga publicada e uma tese em andamento.

O Uruguai foi um dos berços do exílio das principais lideranças políticas pré-1964 do Brasil. Desta forma, a Zona Sul manteve não apenas rotas de fuga, mas também de comunicação com os exilados, o que atraiu também a atenção da repressão, que criou redes de investigações hierarquizadas com o auxílio de agentes locais que encaminhavam informações até chegar ao serviço de inteligência nacional.

Quem queria fugir do País desembarcava em Porto Alegre e fazia o caminho até a fronteira de forma "pingada". Pegavam ônibus até Pelotas, onde permaneciam por algum tempo até ter o contato com as células locais, que informavam sobre as possibilidades de cruzar a fronteira pelos municípios menores. "Houve quem se envolveu nessas redes porque acreditava no ideal de resistência, uma atitude política, e tinham aquelas pessoas que percebiam que havia algo errado no País, de gente sendo presa e que sumiu, e se envolveu apenas pela lógica de tentar ajudar, evitar que pessoas fossem presas e torturadas", detalha Darlise.

Torturados

Há muitos relatos de pessoas da região que foram presas e levadas a Porto Alegre para serem torturadas. É o caso de José Luiz Maurício Braga, que era estudante de Medicina. "Meu marido foi torturado psicologicamente, com os guardas apontando fuzil para ele", relata a artista plástica Seli Nachtigall Maurício, viúva de José Luiz. "Ele era um intelectual e estudava muito sobre política", completa. Após a prisão e tortura, José Luiz deixou a faculdade de Medicina e passou a conviver com transtornos psiquiátricos, sendo diagnosticado inicialmente com esquizofrenia, mas depois como síndrome de bipolaridade.

Ele foi internado em hospícios e tentou se suicidar muitas vezes, e segundo relatos da viúva, passou a ter mania de perseguição. "Ele pensava que eu era agente da Dops [Departamento de Ordem Política e Social] que tinha casado só para espioná-lo. Era uma perseguição muito grande, viver de clandestinidade, um terror, muitos desaparecidos e torturados", relata Seli.

Segundo Giovanni Nachtigall Maurício, biólogo e professor do curso de bacharelado em Gestão Ambiental da UFPel, filho do casal, o episódio da prisão desencadeou um processo traumático no pai, que, quando não estava em períodos de crise, era classificado como "uma pessoa extremamente humana". "Ele tinha momentos intenso de produção, mas daqui a pouco tinha as crises, pensava que os vizinhos estavam vigiando-o. Foi uma vida de altos e baixos. Ele tentava trabalhar, mas tinha essa dificuldade com os relacionamentos", lamenta.

Contexto político do golpe

O golpe em 1964 é uma continuidade, segundo Della Vechia, da crise de 1954, quando Getúlio Vargas, pressionado para renunciar à presidência, se suicidou. "Havia uma nova configuração econômica do Brasil com o capital externo, de muitos recursos oriundos dos EUA nas negociações da Segunda Guerra Mundial", relata.

No período entre a queda do Estado Novo e a volta de Getúlio Vargas, houve uma aproximação entre militares brasileiros e os Estados Unidos. "A oficialidade brasileira ficou sob controle norte-americano, inclusive fazendo cursos nos Estados Unidos", diz Della Vechia.

Após um governo de raízes nacionalistas, alvo de críticas da elite, o suicídio de Getúlio adiou os conflitos entre campos políticos. O governo de Juscelino Kubitschek conseguiu manter o equilíbrio entre os polos, mas Jânio Quadros não teve a mesma habilidade. "O Jânio era alguém que queria estar acima do bem e do mal, então ele jogou com os dois lados. Não se alinhou aos EUA e nem URSS".

O resultado foi a perda de apoio na direita e desconfiança na esquerda, seguida de renúncia. "Veio a campanha que o Jango era comunista, mas era uma bobagem. O Jango assume naquele chamado de parlamentarismo, que na verdade era uma amarra". O modelo não se sustentou por muito tempo e Jango conseguiu retomar o presidencialismo. "Foi tipo: 'agora a gente joga para o colo do Jango a crise e ele que administre'. O Jango não avança nas reformas, mas também não reprime a base social, ele tenta se equilibrar até o momento que vem o golpe", conclui Della Vechia.

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